Blog POLÍTICAS
PÚBLICAS BRASILEIRAS, de autoria de Superdotado Álaze Gabriel.
Disponível em http://politicas-publicas-brasileiras.blogspot.com.br/
Autoria:
Flavio
A. A. Goulart - SQS 302 - Bloco E, apto. 101,
Brasília-DF, 70330-050, Brasil.
RESUMO
Existem mediações numerosas e diversificadas, de
natureza política e cultural, entre as demandas e representações sociais, de um
lado, e a formulação da política pública, de outro. Torna-se importante
conhecer os projetos (e contraprojetos) políticos dos movimentos sociais,
particularmente aqueles relacionados à sua noção de cidadania, bem como as
influências estimuladoras e inibidoras da ação estatal sobre suas demandas.
É necessário apreender algumas das dimensões dos
movimentos sociais, como, por exemplo, sua identidade cultural e seu padrão de
interação com o aparelho estatal. Desta forma, seria possível aclarar as
percepções dos atores sociais a respeito de "necessidades" e sua
noção de "cidadania", bem como seus projetos de ação política.
O conceito e a prática de uma cidadania
"regulada" podem, na verdade, ser incorporados tanto pelo Estado como
pela sociedade. Alcançar um estágio de cidadania "plena" resulta de
um processo histórico de conquista social, no qual se reveste de especial
importância a maneira como a sociedade organiza e representa suas noções acerca
do tema.
O conhecimento aprofundado das contradições entre
as demandas da sociedade e a formulação política pelas instituições pode
resolver o paradoxo apresentado pelo polimorfismo das políticas públicas, a um
só tempo compensadoras e reprodutoras de desigualdades, controladoras e
estimuladoras da ação política da sociedade.
Em conclusão, torna-se necessário conhecer as representações sociais de cidadania em sua dinâmica e variabilidade, o que pode significar um caminho para a definição de novos direitos e novas áreas de ação política para o pólo dominado da sociedade.
Em conclusão, torna-se necessário conhecer as representações sociais de cidadania em sua dinâmica e variabilidade, o que pode significar um caminho para a definição de novos direitos e novas áreas de ação política para o pólo dominado da sociedade.
Palavras-chave: Políticas Públicas; Representações Sociais;
Demandas Sociais; Ação Política; Cidadania
INTRODUÇÃO
Entre as opiniões, imagens e percepções dos atores
sociais, ou seja, suas representações sociais e a tradução destas nos chamados
movimentos sociais, em reivindicações e ação política dirigidas ao aparelho
estatal, existem mediações diversas, tais como consciência e visão de mundo, o
conjunto de saberes "profanos" envolvidos, o sentido e o conteúdo das
carências, necessidades e interesses individuais e coletivos, etc. Em trabalho
recente (Goulart, 1992), procuramos discutir e aprofundar tais mediações, bem como
evidenciar as relações que se estabelecem entre os movimentos sociais e a
formulação das políticas públicas, analisando também os fatores determinantes
da passagem das concepções de mundo elaboradas e difundidas pelos movimentos,
isto é, suas representações cristalizadas nas demandas e reivindicações à ação
dotada de finalidades políticas concretas. Em outras palavras, trabalhamos com
o objetivo de tornar transparentes os determinantes do projeto (ou do
contraprojeto) político dos movimentos sociais, além de tentar evidenciar como
estes dão conta de perceber e enunciar uma noção de cidadania no embate
com o caráter por vezes inibidor, por vezes estimulador, da ação estatal na
área social.
No estudo presente, o eixo analítico central é
aquele consubstanciado pelas representações sociais elaboradas pelos
diversos atores sociais, individuais e coletivos. Do ponto de vista teórico,
cabe ressaltar, preliminarmente, que as representações sociais constituem um
sistema de valores, noções e práticas ligado a um conjunto de relações sociais
e processos simbólicos que instaura a possibilidade de orientação dos
indivíduos no mundo social e material, além de possibilitar a tomada de posição
e a comunicação intergrupal, bem como a decodificação deste mundo e da história
individual e coletiva do grupo. Sua apreensão, através de estudos específicos,
deve levar em conta um contexto sempre em mudança, marcado pelo caráter
contraditório das relações sociais, dentro do qual a representação não deve ser
buscada como única explicação correta de um fençmeno, mas sim como fator
facilitador da comunicação (Herzlich, 1975; Minayo, 1989; Moscovici, 1975).
Quando o tema é a ação política dos movimentos
sociais, cabe também, preliminarmente, estabelecer uma visão mais abrangente de
uma questão central: a dimensão cultural de tais movimentos. Faz-se
necessário, portanto, tentar discriminar e aclarar os valores aí referidos,
como, por exemplo, a consciência política, ou ainda, os aparentes apoliticismo
e apartidarismo dos movimentos. Neste aspecto, uma afirmativa que carece de
maior aprofundamento é aquela, por vezes registrada por determinados autores,
de que a sociedade brasileira não possui representações firmadas de suas
instituições (Silva, 1990). Bem ao contrário, tais representações certamente
devem estar presentes, inclusive possuindo um grande grau de elaboração. A
questão é sua revelação não-imediata, uma vez que elas encontram-se revestidas
de elementos que escamoteiam a realidade, os quais faz-se necessário
des(en)cobrir. Insere-se aqui, ainda, o deslindamento da "identidade"
dos movimentos sociais, referida amplamente na literatura. Pode-se vislumbrar,
nesta direção, pelo menos três dimensões analíticas, a saber: a cultural, a
política e a econômica, incluindo-se nesta última a "identidade de
consumidores", aspecto bastante enfatizado, aliás, em muitos trabalhos
realizados na última década.
O Estado, suas características, seu papel,
suas responsabilidades — melhor dizendo, a percepção e a representação de tais
aspectos por parte da população — é um tópico que não pode deixar de ser
considerado dentro da temática ora percorrida. Se a literatura sociológica se
divide e se confronta, ao "representá-lo" dentro de uma visão mais
"estrutural" ou mais "autonomista", seria lícito supor que
também as representações da sociedade enveredassem por caminhos divergentes.
Tomando a saúde como exemplo, o papel do Estado assume especial relevo, tendo
em vista as definições da Constituição Federal de 1988, o que acarreta,
certa-mente, a necessidade de estudos que apreendam de maneira mais abrangente
a percepção deste Estado por parte dos atores que se articulam em torno dele.
Assume especial relevo a questão, já levantada por Cohn et al. (1991), de que a
representação de poder público de que dispõe a população basicamente se refere
ao executivo, na esfera municipal, fato que, se, de um lado, reconhece a
importância de um ator destacado no cenário, de outro nega outras mediações
institucionais entre a sociedade civil e a sociedade política. A questão do
Estado suscita, ainda, pelos menos dois outros temas correlatos: primeiro, os
"outros discursos", ditos competentes, na verdade representações
sociais de um determinado pólo da sociedade — as quais influenciam e
praticamente definem alguns dos conteúdos e valores que compõem a noção social
de cidadania, cumprindo-nos apreendê-las e esmiuçá-las dentro da linha
inaugurada no Brasil por Luz (1979); segundo, a noção de legalidade, dentro do
referencial de Castoriadis (1983), que pode ser considerada uma forma de
representação destacada pelos mecanismos de sociabilidade dos movimentos
sociais, a qual não segue diretamente os ditames jurídicos oficiais.
Os temas Estado e dimensão cultural
permitem uma aproximação ao outro componente do objeto central deste trabalho:
a ação política dos movimentos sociais, ou seja, os modos de inserção
dos atores individuais, sua percepção de "necessidades" e seus
projetos de ação. Coloca-se, assim, em evidência a questão das pautas
reivindicativas dos movimentos, seus conteúdos e sistemas de referência, bem
como seus aspectos locais/gerais, mais ou menos politizados ou fragmentados.
Deve-se tentar verificar as relações entre o grau de politização de um grupo e
a autopercepção de seus membros, enquanto clientes/sujeitos,
suplicantes/demandantes em relação ao Estado. Da mesma forma, podem ser
apreendidas, tentativamente, a percepção que os grupos e indivíduos têm a
respeito de categorias que escapam ao paradigma do trabalho e da produção —
como, por exemplo, família, relações vicinais, identidade comunitária,
vinculação a outras formas de organização que não sindicatos e partidos — e sua
influência na ação política de tais atores.
O tema dos projetos de ação política dos movimentos
sociais encontra grande desenvolvimento na literatura sociológica desde os
estudos clássicos de Marx. Dentro do referencial marxista, aliás, destacam-se
as contribuições de Goldmann (1980), segundo o qual o comportamento político dos
atores sociais é revelado de maneira peculiar, não bastando, para tanto, a mera
indagação aos indivíduos para que exponham "o que pensam". Isto
simplesmente significaria a omissão do fato de o que as pessoas dizem não
corresponder necessariamente ao que elas fazem, ou seja, confundir-se-ia a
consciência individual com a "funcionalidade global", bem como os
fatos com o comportamento. A solução para o problema é realizar a apreensão dos
fatos através de sua transformação social, isto é, buscar a "funcionalidade"
de que fala o autor, a qual implica justamente o sujeito coletivo, "único
sujeito, a nível histórico, que pode dar conta do conjunto dos fenômenos"
(Goldmann, 1980). Ainda conforme Goldmann, o problema da consciência coletiva
não se resume em determinar o que pensam conjuntamente os membros de um grupo,
mas sim em verificar que mudanças podem ser produzidas na consciência grupal. A
intervenção (ação política) na vida social deve levar em conta as informações
passíveis de serem transmitidas, aquelas que podem ser recebidas pelos membros
do grupo, bem como aquelas cuja aceitação no grupo é vedada. Ao comparar a ação
dos homens sobre outros homens e com a ação sobre o mundo exterior, o autor
esclarece que, na verdade, ambas as formas de ação interferem-se mutuamente e
que toda transformação social comporta uma transformação a nível dos sujeitos
individuais ou coletivos.
Ainda na vertente marxista de análise, um conceito
que tem marcada importância na presente discussão é aquele desenvolvido por
Bakhtin (1988), denominado "índice de valor social", o qual afeta a
escolha dos temas e as práticas assumidas pelos atores e suas manifestações
simbólicas e verbais. Na expressão de Bakhtin, "não pode entrar no domínio
da ideologia, tomar forma e aí deitar raízes, senão aquilo que adquiriu um
valor social". Da mesma forma, para que uma determinada concepção ou
representação social ascenda à posição de reivindicação norteadora de uma ação
política, dentro dos grupos e movimentos sociais, esta deve, por conseqüência,
apresentar um determinado valor social, cuja fonte verdadeira, lembra Bakhtin,
é a relação interindividual, e não a consciência individual.
Kosik (1986) fornece alguns elementos interessantes
para a fundamentação da ação política. Para este autor, a passagem da
inautenticidade de um mundo alienado para a autenticidade, ou seja, a
"destruição da pseudoconcreticidade", pode se efetuar através de
diferentes formas de ação, tanto individuais como coletivas, que constituem
opções históricas, com conteúdos sociais e de classe precisamente determinados.
São elas: (a) a alienação, que assume feições de acriticismo ou
"sentimento do absurdo"; (b) a modificação existencial, na qual o
indivíduo apenas muda sua posição perante o mundo; e (c) transformação revolucionária,
através da qual o ator e o mundo se modificam. Ainda segundo Kosik, a ação
política efetiva dos indivíduos na sociedade só pode ocorrer quando se dá a
passagem do "mundo do cotidiano", com seus aspectos de familiaridade,
de intimidade e, mesmo, de banalidade, para o "mundo da História",
que é o seu contrário e dentro do qual o homem pode, finalmente, "praticar
a verdade da autenticidade".
Em Gramsci (1978), a questão da ação política dos
grupos sociais adquire grandes consistência e vinculação prática. Este autor
desenvolve um conceito de "filosofia crítica" que se opõe às visões
de mundo espontaneístas, inspiradas no senso comum. A filosofia crítica é a
base para o conhecimento e para a reflexão política e, assim, pode fundamentar
verdadeiros projetos para o futuro e para a transformação da sociedade. A
partir das considerações de Gramsci sobre "sociedade política",
"sociedade civil", "Estado ampliado" e "conquista da
hegemonia", são colocados como pressupostos fundamentais da luta política:
a necessidade de uma profunda transformação cultural; a conquista de uma visão
de mundo autônoma, em todos os aspectos da existência, por parte dos oprimidos;
o reconhecimento do fato de todos os homens serem pensadores; a identificação
dos "intelectuais orgânicos" no seio de cada classe social; e,
finalmente, "o caráter processual e molecular da transição", ou seja,
a "guerra de posições". Também a ideologia é aqui considerada, na
medida em que representa um conjunto de concepções dos grupos sociais no qual
estes inspiram seus atos políticos e que não pode ser julgado por critérios de
verdade/falsidade, mas pela sua "eficiência política" ou, nas
próprias palavras do autor, "para tornar os governados independentes
dos governantes, para destruir uma hegemonia e criar outra" (Gramsci,
1978). Como se vê, são aspectos que fazem alusão direta e reforçam a
necessidade da compreensão das representações sociais como elementos
constituintes da visão de mundo a ser conquistada através da batalha cultural
pela hegemonia.
A discussão da ação política dos atores e
movimentos sociais não pode prescindir, ainda, das reflexões de Habermas (1987)
e outros autores da Escola de Frankfurt a respeito da "razão
comunicativa". Com efeito, não seria uma forma efetiva de ação política
aquela que resulta na implementacão social da razão, através de um processo de
"interação dialógica de atores"? Como lembra Freitag (1990), a razão
comunicativa suscita uma "ação comunicativa" na qual cada ator
reivindica nada mais do que uma "pretensão de validade", isto é,
interage com seu interlocutor através do processo argumentativo, reconhecendo a
possibilidade de contestação por parte deste.
A ação política concreta dos movimentos sociais, ou
seja, a trajetória que parte de suas representações e demandas e busca a formulação
e o desenvolvimento de ações estatais específicas, não se estabelece como uma
relação diretamente causal. Os próprios estudos que procuram aclarar esta
questão costumam privilegiar a eficiência política dos movimentos ou, ao
contrário, suas limitações nesta área. De outro lado, existem abordagens que
procuram enfatizar o caráter cultural (ou, às vezes, mais propriamente,
contracultural) dos movimentos sociais, depositando nestes grandes esperanças
com relação ao seu potencial inovador das relações sociais e de busca de maior
democratização da vida social. Configura-se, assim, como diz Jacobi (1989),
"um espectro analítico amplo que tanto permite questionar os movimentos
como idealizar seu alcance". Torna-se patente, contudo, que ignorar a
existência de tais movimentos e o impacto político que estes são capazes de
produzir significa deixar de lado um real fato novo, que, mesmo com suas
contradições e ambigüidades, não deixa de ser portador de novas concepções e
representações da sociedade e do fazer político. As análises polarizadas e
dicotçmicas, particularmente aquelas que tendem a denunciar um caráter
"perverso" do Estado em sua interação com a sociedade civil, parecem,
nos dias atuais, ceder espaço para abordagens mais centradas nos aspectos
políticos e institucionais dos movimentos.
De qualquer forma, há que se relevar os fatores
ditos "estruturais" que governam a formulação das políticas públicas.
Está presente, de forma intensa, na literatura sociológica, uma ênfase na
chamada "crise urbana", trabalhada conceitualmente, entre outros
autores, por Castells (1979). Segundo este autor, tal crise representa a
problemática característica da urbe capitalista moderna, dentro da qual
destaca-se a ação (contraditória) do Estado, que contribui para a politização
crescente dos atores sociais em torno da "questão urbana". Assim, os
movimentos sociais, em sua vertente urbana, estão relacionados e se dirigem
contra a degradação das condições de existência em suas dimensões cotidianas.
Estabelece-se, desta forma, um nexo causal entre um modelo econçmico excludente
e concentrador de renda, a crise urbana e o padrão de atuação dos movimentos
sociais nestas condições. A crise urbana, na verdade, insere-se num contexto
mais amplo de crise do modo de producão capitalista, bem como do Estado
supostamente promotor de bem-estar social, com todas as suas incapacidades e
contradições estruturais.
Porém, mesmo considerando-se os determinantes
estruturais das contradições geradas pela vida urbana, deve-se avançar o
processo de análise, tendo em vista que as demandas sociais possuem
determinacões que escapam a uma lógica de macrocondicionamentos gerados pela
estrutura da sociedade. Decorre daí a valorização da noção de
"carência" enquanto construção social, determinada por atores sociais
concretos, e não como resultado de uma lógica macroanalítica. Uma "lógica
da ação coletiva" deve buscar terrenos específicos de construção de saber,
como, por exemplo, o referencial da "ação comunicativa", de Habermas
(1987), ou da "feição dialógica", de Offe (1984) e Wiesenthal. Desta
forma, os movimentos sociais podem ser captados como complexos de relações
sociais em que os atores se transformam pela sua interação com os demais ou, em
outras palavras, como um conflito entre dois ou vários campos, que resulta numa
síntese que supera e transforma a todos (Jacobi, 1989). Estes novos
conhecimentos devem contemplar, ainda, a determinação dos fatores e mediações
que intervêm na ação coletiva organizada, como, por exemplo, a base social dos
movimentos, os agentes externos, a noção de carência e necessidade e as
concepções de sociedade, política e transformação social existentes nos
movimentos sociais. Através de tais elementos tornar-se-á possível estabelecer
as vinculações entre as percepções e representações da população, de um lado, e
a ação política propriamente dita, de outro. Como enfatizam Cohn et al. (1991),
a visão exclusiva dos processos políticos, sociais e institucionais em nível
macroestrutural não basta; a ela deve-se associar o desvelamento do cotidiano
dos sujeitos envolvidos. No caso específico da saúde, analisado por tais
autores, este "desvelamento do cotidiano" deve abarcar o verdadeiro
significado do direito à saúde e o conjunto das representações populares a
respeito da saúde, da doença, das instituições e serviços, de forma a repensar
a relação entre o chamado "direito positivo" e o quadro notório de
desigualdades, no campo sanitário, a que está submetida a população.
Os movimentos sociais constituem, nas palavras de
Durhan (1984), "formas coletivas de construção da cidadania", e em
sua base mobilizatória está a percepção das carências comuns aos membros da
sociedade, o que se vincula fortemente à noção de direitos básicos. Segundo
Jacobi (1989), além da noção de carência referida acima, os movimentos sociais
se apóiam em outro elemento motriz: o trabalho desenvolvido pelas suas
organizações, o que constitui sua ação propriamente política. Contudo, entre um
e outro, ou seja, na passagem da necessidade à reivindicação, existe um conjunto
de mediações representadas, particularmente, pela afirmação de direitos, os
quais, segundo Durhan (1984), emergem de "uma avaliação desta
legitimidade, que é medida por sua capacidade [do Estado] de respeitar ou
promover os direitos que a população está se atribuindo". A questão
remete ao imaginário político dos atores sociais, isto é, recoloca os
determinantes culturais — mais propriamente, de uma "cultura
política" de tais atores —, enfatizando a abertura e a ocupação de espaços
políticos por estes, dentro do processo de luta pela hegemonia descrito por
Gramsci (1978).
Ainda tomando exemplos no campo da saúde, o recente
trabalho de Cohn et al. (1991) é pródigo em considerações pertinentes ao tema
em pauta. Assim, por exemplo, estes autores relevam a especificidade das
práticas sanitárias, nas quais verifica-se que um determinado perfil de oferta
de serviços torna-se capaz de gerar um perfil de demandas e, portanto, de
representações da população a respeito do processo saúde-doença. Desta forma,
abrem-se perspectivas para a compreensão da relação existente entre carências,
demandas e sua concretização tanto em políticas como em direitos sociais, além
da relação dialética entre elas, pela qual o que é causa pode ser também
conseqüência, como é o caso da relação entre demandas e políticas. Importa
conhecer as carências e necessidades — não só as tecnicamente determinadas, mas
também as sentidas — e, principalmente, definir o processo através do qual tais
necessidades vão se transformar em demandas. Reforça-se, então, a necessidade
de "esmiuçar o cotidiano dos movimentos sociais", em busca da
apreeensão da constituição das demandas, das práticas profissionais, dos
saberes científicos e leigos envolvidos, das relações entre movimentos e o
Estado, etc.
Em relação aos chamados "novos"
movimentos sociais (assim denominados pelo interclassismo de sua composição e
pela solidariedade e "planetarização" de suas lutas, entre outros
aspectos), Frank & Fuentes (1989) destacam as características de tais
movimentos, embora ressalvem os autores que são "novos" apenas com
relação a algumas particularidades. Em primeiro lugar, esses movimentos revelam
uma grande variedade e mutabilidade, tendo em comum, basicamente, a mobilização
fundamentada em sentimentos de moralidade e justiça, e um "poder
social" baseado em sua capacidade mobilizadora contra o caráter de
excludência da sociedade e na sobrevivência e identidade dos grupos
participantes. A busca fundamental de tais movimentos é mais de autonomia do
que de poder no aparelho de Estado, sendo que o reforço deste último aspecto
seria praticamente incompatível com um verdadeiro caráter de "movimentos
sociais". As ações assumidas pelos movimentos, além de freqüentemente
transitórias, cíclicas e conflitivas, são mais defensivas do que ofensivas, o
que não impede que tais movimentos venham a ser agentes importantes de
transformação social e de ruptura com o capitalismo tradicional. Os autores
concluem que os movimentos sociais das sociedades industriais atuais
desempenham o papel de ampliar, aprofundar e redefinir as formas tradicionais
de democracia do Estado político e econçmico, consideradas cada vez menos
adequadas para tratar dos problemas sociais e individuais, fazendo a
aproximação com novas formas de democracia civil, com seus componentes
fundamentais de participação (não estritamente no plano eleitoral) e autonomia.
æ aproximadamente este o teor das considerações de Touraine (1978) a respeito
de um "novo e gigantesco movimento social", que terá, para as
sociedades pós-industriais, a mesma importância que teve o movimento operário
para as sociedades capitalistas iniciais. Este autor denomina tal movimento
"antitecnocrático", pois envolve um profundo sentimento de
insatisfação e saturação das pessoas com as decisões externas ("tecnocráticas")
sobre seu cotidiano. Uma das características essenciais de tal movimento é a
formação de grupos militantes organizados dentro das próprias instituições
tecnocráticas, porém opondo-se a elas e conquistando novos espaços de poder,
espaços que não significam, necessariamente, a proposição de um novo modelo de
sociedade, mas o desenvolvimento da "ação crítica", condição
elementar da democracia, segundo Touraine. Godbout (1983), descrevendo a
situação de uma sociedade mais próxima à era pós-industrial, como é o caso de
Quebec no Canadá, aponta algumas das distorções que podem envolver os
movimentos sociais em tais circunstâncias. Ele alerta, por exemplo, que os
organismos populares não representam, dentro do sistema de bem-estar social
daquele país, um verdadeiro "contrapoder", estando mais próximos de
representarem uma "nova prática profissional", dada a integração dos
usuários dos serviços dentro da estrutura formal dos mesmos. Em outras
palavras, o autor alerta que os atributos conquistados pelos movimentos sociais
dizem respeito mais à distribuição de bens do que propriamente a uma
redistribuição do poder político.
O caráter específico, pluralista e alternativo — em
relação à prática política tradicional — dos movimentos sociais contemporâneos
encontra hoje grande destaque na literatura sociológica. Recorre-se, mesmo, à
imagem de um espaço político intermediário entre o Estado e a sociedade civil,
onde os movimentos atuam e constroem sua autonomia distantes de qualquer forma
de institucionalização ou de partidarização. Melucci (1989) fala de "novas
formas de solidariedade conflitual" exercidas pelos movimentos sociais,
que, desta forma, preenchem funções de socialização e de "participação
submersa". Esta grass roots democracy dos autores de língua inglesa
tem, naturalmente, dificuldade em permear os canais tradicionais de
participação e organização políticas. Constituem sistemas de relativa
incerteza, uma vez que os resultados materiais e ideológicos que produzem são
difíceis de se prever.
Do ponto de vista ideológico, as definições não são
igualmente fáceis. Os "novos" movimentos sociais reúnem atores
políticos heterodoxos, cuja ação sobre a prásica política tradicional é, acima
de tudo, de negação e renovação. Ainda conforme Melucci (1989), a ação política
dos movimentos se afasta dos paradigmas anteriores, inspirados em interesses de
classe ou em valores partilhados, refletindo um clima cultural mutante. Se, de
um lado, tratar a incerteza dentro de um sistema complexo, como é a sociedade
contemporânea, exige a valorização das dimensões políticas da ação, de outro
constata-se, cada vez mais, que os movimentos deslocam-se para terrenos
não-políticos. Tal orientação antagônica, segundo Melucci, reflete a lógica das
sociedades complexas, nas quais os conflitos não são apenas políticos; antes,
afetam o sistema de relações (políticas, econômicas, morais, culturais, etc.)
como um todo. A ação coletiva não é realizada com a finalidade exclusiva de
"trocar bens num mercado político" e, sendo assim, não se pode calcular
com precisão todos os objetivos que se quer alcançar. Cardoso (1984) adverte: a
autonomia ideológica dos movimentos não garante, por si só, alterações nas
correlações de força vigentes; a ação reivindicativa que neles predomina é
autêntica e legítima, porém fragmentada, além de modelada e limitada pelas
instâncias estatais. Segundo esta autora, o verdadeiro denominador comum dos
movimentos sociais é o sentimento de opressão compartilhado por seus membros. A
face reivindicativa, sua expressão mais transparente, não parece capaz de
promover grandes transformações sociais, porém, quando tais movimentos são
vislumbrados como tradução de uma nova identidade cultural, torna-se "possível
pensar que venham a ser uma nova peça no jogo político" (Cardoso,
1984).
O futuro da ação política dos movimentos sociais
não deverá ser, por certo, nem a sua institucionalização nem a sua
transformação/incorporação por partidos políticos. Conforme adverte Melucci
(1989), os movimentos devem, acima de tudo, "fazer a sociedade ouvir
suas mensagens e traduzir suas reivindicações na tomada de decisão política",
respeitada a autonomia dos mesmos. A tarefa primordial dos movimentos, conforme
a reflexão de Ramos (1990) é desempenhar um papel contra-hegemônico, o que
significa fazer aflorar o antagonismo mascarado nas relações sociais e superar,
"a partir do saber dito espontâneo do viver colado à vida, aquilo que,
muitas vezes, são expressões contrárias aos interesses dominantes, tão
teorizados e nem sempre expressos no sentido cultural e político".
Trazendo a questão da politização dos movimentos
sociais para uma análise referente a seu desenvolvimento no Brasil
contemporâneo, verifica-se que parte apreciável dos autores vai localizar, na
década de 70, a emergência de tais movimentos como atores destacados no cenário
político, bem como de suas principais propostas de ação. É bem verdade que os
caminhos assumidos pelo Estado capitalista no Brasil, na formulação das
políticas sociais, foram historicamente marcados por centralismo, fragmentação,
clientelismo, regressividade e, particularmente, pelo caráter de exclusão da
população do poder real de decisão. Contudo, como assinala Draibe (1988), vêm
se afirmando, desde a década passada, algumas tendências de transformação no
caráter das políticas sociais, as quais, na verdade, refletem o que já acontece
na maior parte dos welfare states do mundo ocidental. A inovação mais
destacada, que diz respeito à "sociabilidade" das políticas sociais,
é o incentivo à participação, através das modalidades "conselhistas".
Neste campo, é relevado o papel dos movimentos sociais, os quais, com maior ou
menor grau de ideologização, têm representado a expressão mais destacada de
novas formas de sociabilidade. Sem significar, concretamente, deslocamento da
estrutura real de poder político ou instauração de novas formas de poder
externo ao aparelho estatal, a intensificação da participação dos clientes na
geração das políticas parece, segundo Draibe, diminuir o grau de passividade e
rearticular "o espaço, a trama social, na qual se processam as
políticas".
Ainda no plano da evolução histórica dos movimentos
sociais e de suas propostas políticas no Brasil, cabe uma referência ao
conjunto de eventos conhecidos como Reforma Sanitária, ocorridos nos últimos 6
ou 7 anos no país, e seus desdobramentos legais e institucionais. Embora o
desenvolvimento de seus conceitos orientadores remonte a duas ou três décadas
atrás, pelo menos uma parte de suas raízes pode ser encontrada na VIII
Conferência Nacional de Saúde (CNS), realizada em 1986, na qual firma-se um
conceito de saúde em que pode ser destacada a valorização do processo histórico
e do estágio de desenvolvimento produtivo da sociedade, bem como dos
componentes de organização e ação política da população em sua luta pela obtenção
de melhores condições de vida e de saúde. A VIII CNS seria, na visão de
Teixeira (1989), um evento "ao mesmo tempo resultante/indutor das
formas de organização social da produção e da luta política". Ainda
segundo esta autora, o conceito de Reforma Sanitária deve se referir tanto ao
processo de transformação normativa e institucional quanto a um deslocamento
efetivo de poder político em direção às camadas populares. Tal processo de
reforma abrangeria, portanto, a ampliação da consciência sanitária da
população; a construção de novos sistemas analíticos, fundados na determinação
social da saúde-doença e suas práticas, inclusive no que tange às questões
éticas; o desenvolvimentos de instrumentos gerenciais democráticos; e,
finalmente, a abertura de novas frentes de luta política, incluindo coalizões
que não percam a referência da democratização geral da sociedade e da luta
pelos direitos em saúde. Trata-se, como se vê, de uma visão de caráter
projetivo (wishful thinking) do processo de Reforma Sanitária, o qual,
concretamente, tem sido marcado por diversos desvios e limitações de ordem
política, econômica e cultural. A necessária ampliação da consciência sanitária
de que fala Teixeira, sem embargo de sua importància, certamente constitui-se
num processo de cunho educativo e de transformação cultural, ainda em estado
embrionário, para o qual um maior conhecimento das representações sociais da
população sobre as instituições e políticas de saúde poderá trazer
contribuições as mais relevantes.
Cabe agora indagar acerca da orientação política
dos movimentos sociais nas questões referentes à cidadania política
propriamente dita. Como acentuam Evers (1984) e outros autores que privilegiam
a abordagem via "identidade cultural", pode-se vislumbrar, nos
movimentos, uma cultura política relativamente bem definida, com valores
intrínsecos, dinâmica organizacional própria (democracia de base), referência
coletiva ante o grupo e referência constante ao apoliticismo do movimento.
Jacobi (1989) destaca outros valores de referência dos movimentos — no caso, de
moradores da Grande São Paulo —, como, por exemplo, as noções de cidadania,
justiça e identidade, sem esclarecer, contudo, o conteúdo e o sistema
referencial utilizado na definição de tais valores. No trabalho de Cohn et al.
(1991), são relevadas as representações da política, e sua função, por parte
dos grupos sociais investigados, os quais valorizam sobremaneira o poder
executivo, em detrimento das atuações parlamentar e judiciária. Isto, segundo
os autores, apenas reflete a representação do executivo como poder realmente
capaz de dar respostas concretas, quando comparado com os partidos e o
parlamento. Em outras palavras, trata-se de uma representação de um poder com o
qual pode-se estabelecer uma relação direta (e, além disso, capaz de dar
respostas diretas), sem intermediações. Esta concepção de política indica um
padrão de participação traduzido por um caráter de fragmentação de demandas,
formuladas através de súplicas e reivindicações, não propriamente como direitos
assumidos. Como transparece nas pesquisas de Caldeira (1984) sobre as
representações sociais da política, do poder e dos poderosos na população da
periferia de São Paulo, os sistemas conceituais presentes constituem uma
realidade fragmentada e polimorfa, cuja configuração assemelha-se "mais
a um caleidoscópio que a um quebra-c-abeça". Como diz a autora, "amanhã,
com os mesmos elementos, se poderá produzir um discurso diferente; e eu
prâpria, a partir desses depoimentos, posso fazer outra análise"
(Caldeira, 1984).
A cidadania é acima de tudo, uma instituição em
desenvolvimento permanente, devendo seu aprofundamento distinguir os direitos
oferecidos pelo Estado aos cidadãos da própria concepção que tais cidadãos
possuem de cidadania. Esta, contudo, não é uma vinculação que se apresenta de
forma mecànica e direta, já que, em diferentes contextos, os direitos civis,
políticos e sociais de que fala Marshall (1967) em suas formulações clássicas
podem ter valores ideológicos diferenciados, como concretamente constatado no
caso brasileiro. Assim, o modelo "clássico" de cidadania social,
embora desejável, pode não ser exatamente aquele que vem sendo gestado pelos
movimentos sociais no Brasil, tendo em vista, entre outros aspectos, o padrão
de carência e de desigualdade experimentado pela população (Peirano, 1986). A
cidadania "regulada", na concepção de Santos (1979), não é, portanto,
apenas concepção e prática do aparelho estatal, mas também maneira de percepção
da clientela do mesmo. Como conclui Caldeira (1984), no estudo citado acima, a
noção de cidadania pressupõe conteúdos os mais diversificados, já que as
possibilidades de criação de novas identidades e de novos conteúdos são
contínuas e os caminhos da assunção de direitos podem variar em função de
diferentes razões e experiências, resultando em vias mais conservadoras ou
progressistas de ação reivindicativa, dependendo do caso.
Vê-se, portanto, que a superação da cidadania
regulada — em outras palavras, a instauração da cidadania "plena" —
é, acima de tudo, um processo histârico de conquista, no qual importa especial
atenção às maneiras como a sociedade se organiza, se mobiliza e representa a
noção de cidadania. As evidências empíricas obtidas em uma sociedade como a
brasileira contemporânea demonstram que existem desarticulações e contradições
não resolvidas a respeito das formas como são direcionadas as demandas sociais,
a oferta de políticas e serviços pelo Estado e a percepção dos usuários quanto
a estas políticas e serviços. O entendimento de tais contradições remete a
discussão diretamente à noção de cidadania, seja aquela realmente existente,
seja aquela retida no território das utopias da sociedade. Além do mais, tal
entendimento desarticula (e ao mesmo tempo aclara) o paradoxo representado
pelas políticas públicas, ao mesmo tempo compensadoras e reprodutoras da
desigualdade, incentivadoras e controladoras da ação política da sociedade.
Entender essas contradições é o que Silva (1990) chama de fazer emergir
"novos significados e representações" da cidadania. Em um trabalho
que toma como referência central a obra de Castoriadis (1983) sobre o
imaginário social e a ação "auto-instituinte" em uma sociedade
autônoma, a referida autora procura destacar a idéia de "espaço e tempo
públicos", capaz de instituir novos direitos e de criar "um novo
lugar para as classes populares no campo da representação política"
(Silva, 1990), dentro de um processo dominado pela noção de "tempo
indeterminado", ou seja, no qual está aberta a possibilidade de
instituição permanente ("sempre, de novo e, portanto,
diferentemente") deste mesmo processo.
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