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“Políticas Públicas Brasileiras”, de autoria de Superdotado Álaze Gabriel.
Autoria:
Tânia Bacelar. Drª em Economia,
Planejamento e Organização do Espaço; Profª dos cursos de pós-graduação em
Geografia, Ciência Política e Desenvolvimento Urbano da Universidade Federal de
Pernambuco.
INTRODUÇÃO
Para
abordar o tema das políticas públicas no Brasil, vamos tratá-lo em três grandes
blocos. O primeiro discutirá a herança das políticas públicas no Brasil. O
segundo, as novas tendências da economia mundial e suas repercussões nas
políticas públicas nacionais. E o terceiro, as ameaças e oportunidades para o
movimento popular brasileiro.
HERANÇA
DAS POLÍTICAS PÚBLICAS NO BRASIL
Chamamos
de herança recente o período que vai dos anos 30 até hoje, quando o Brasil
passa por uma transformação muito grande. Nos anos 20, era um país rural e
agrícola. O censo de 1920 revelava que 30% da população brasileira vivia nas
cidades e 70%, no campo. Cinqüenta anos depois, ocorria o inverso – 70% nas
cidades e 30% no campo. Até 1930, a economia do Brasil era uma economia
agrícola. Em 1980, o Brasil era o oitavo PIB industrial do mundo. Depois dos
sete grandes, o oitavo era o Brasil. Isto nos dá uma idéia da mudança de perfil
na sociedade e na economia em meio século.
O
que alguns países levaram séculos para fazer, o Brasil fez em cinqüenta,
sessenta anos. Transformou-se numa potência industrial média, com a maior
parcela da sua gente morando nas cidades. Este é o perfil atual do Brasil. Para
entender os dias de hoje, é necessário saber que Estado tínhamos anteriormente
e que heranças e traços foram se fixando nesse percurso.
Essencialmente,
o que caracterizava o Estado brasileiro nesse período (1920-1980) era seu caráter
desenvolvimentista, conservador, centralizador e autoritário. Não era um Estado
de Bem-Estar Social. O Estado era o promotor do desenvolvimento e não o
transformador das relações da sociedade. Um Estado conservador que logrou
promover transformações fantásticas sem alterar a estrutura de propriedade, por
exemplo. Nessa fase, o grande objetivo do Estado brasileiro era consolidar o
processo de industrialização. Desde o começo do século, optou-se pela
industrialização. A grande tarefa era consolidar esse processo e fazer do
Brasil uma grande potência. Assim, o grande objetivo era de ordem econômica:
construir uma potência intermediária no cenário mundial. O Estado desempenhava
a função de promover a
Texto
retirado de: Santos Junior, Orlando Alves dos...[et al.]. (organizadores).
Políticas Públicas e Gestão Local: programa interdisciplinar de capacitação de
conselheiros municipais. Rio de Janeiro: FASE, 2003.
Essencialmente,
o que caracterizava o Estado brasileiro nesse período (1920-1980) era seu caráter
desenvolvimentista, conservador, centralizador e autoritário. O Estado
brasileiro é, tradicionalmente, centralizador. A pouca ênfase no bem-estar, ou
seja, a tradição de assumir muito mais o objetivo do crescimento econômico e
muito menos o objetivo de proteção social ao conjunto da sociedade, fez com que
o Estado adquirisse uma postura de fazedor e não de regulador. Nós não temos
tradição de Estado regulador, mas de Estado fazedor, protetor; não temos
tradição de Estado que regule, que negocie com a sociedade os espaços
políticos, o que só hoje estamos aprendendo a fazer. O Estado regulador requer
o diálogo entre governo e sociedade civil, e nós não temos tradição de fazer
isso. O Estado centralizador, em muitos momentos da nossa vida recente,
junta-se ao autoritário: tivemos uma longa ditadura no período Vargas e,
depois, uma longa ditadura nos governos militares pós-64. Então, o viés
autoritário é muito forte nas políticas públicas do país.
Dado
o seu caráter autoritário, o Estado não precisava se legitimar perante a grande
parcela da sociedade, ficando refém dos lobbies dos poderosos nos gabinetes,
principalmente de Brasília, já que se concentra na União. E as grandes
lideranças nos períodos das ditaduras nem pressão podiam fazer. Algumas estavam
exiladas, outras foram mortas. Assim, a tradição, o ranço da vertente
autoritária, tornou-se um traço muito forte nas políticas públicas do país, e
as políticas públicas eram muito mais políticas econômicas. Se olharmos a
história recente, as políticas sociais e as políticas regionais são meros
apêndices, não são o centro das preocupações das políticas públicas. Nelas, o
corte era predominantemente compensatório, porque o central era a política
econômica, já que a política industrial era hegemônica, porque o projeto
central era a industrialização.
Esse
perfil autoritário e conservador também se traduz na maneira como
tradicionalmente são pensadas as políticas sociais. Quem está lá em Brasília
tende a pensar que o Brasil é uma média. E a média não diz quase nada do
Brasil, que é um país muito heterogêneo. A conseqüência dessa leitura é a
dificuldade em considerar a heterogeneidade real do Brasil.
Cada
lugar requer uma solução que venha da realidade. Quando se tem uma política centralizada,
o tratamento é homogeneizado. A centralização faz com que as propostas venham
de cima para baixo, e essa é uma tradição das políticas sociais no país.
Junta-se a isso a conseqüente dificuldade de promover a participação da
sociedade.
Esse
perfil autoritário e conservador também se traduz na maneira como
tradicionalmente são pensadas as políticas sociais. Quem está lá em Brasília
tende a pensar que o Brasil é uma média. E a média não diz quase nada do
Brasil, que é um país muito heterogêneo. Mas, vejamos ainda: que tipo de ação
praticou o Estado? O Estado brasileiro fez tudo para promover o projeto
industrial: financiou, protegeu, criou alíquotas, produziu insumos básicos.
As
estatais, que estão sendo privatizadas agora, produziam insumos básicos. Nas
atividades mais pesadas, de investimento mais pesado, com taxa de retorno mais
lento, houve participação do setor estatal produtivo. A produção de aço, a
mineração, a produção de petróleo e de energia, têm a mesma natureza: são
insumo básico. O Estado investiu em projetos grandes, onerosos, com taxas de
retorno mais lentas, para possibilitar que o setor produtivo privado ficasse
com o mais leve e rapidamente rentável. O que se fez de rodovias, de portos, de
instalações de telecomunicações nesse país, nos últimos anos, é inimaginável. E
quem foi responsável por todas essas realizações? o Estado brasileiro. Agora,
parte dessa estrutura está sendo desmontada, com as privatizações.
Em
muito menor grau, o Estado brasileiro também facultou serviços sociais, de
segurança e justiça. O Estado regulador, embora com uma face muito menor do que
o Estado realizador, também se fazia presente, quando era imprescindível a seu
projeto. Por exemplo, na era Vargas, o Estado interveio para regular a relação
trabalho-capital. Quer dizer, no momento em que a opção é a industrialização,
em que o operariado vai surgindo e em que é necessário definir as regras do
jogo entre o trabalho e o capital, o Estado brasileiro aparece com força.
São
da era Vargas o salário mínimo e o essencial da legislação trabalhista que
ainda se mantém. Na Justiça do Trabalho, ou seja, nos mecanismos de regulação
da relação entre trabalhador urbano e capital, o Estado esteve muito presente.
E
o que herdamos dessa história brasileira, com o apoio do Estado brasileiro? Na
minha visão, herdamos um país que consegue ser a oitava economia do mundo, em
poucos anos, e que tem, ao mesmo tempo, a maior fratura social dentre os países
de perfil semelhante. Não há outro país com o mesmo perfil do Brasil. Conseguiu
percorrer essa trajetória econômica, que é exitosa do ponto de vista de seus
objetivos, mas é único quanto à distribuição de renda: 20% dos mais pobres
detêm, apenas, 2% da renda nacional, enquanto os 10% mais ricos detêm quase 50%
dessa renda. Só a Guatemala, um pequeno país, sem a importância econômica do Brasil,
é que apresenta um perfil semelhante. Na verdade, herdamos um país com uma
grande vitalidade econômica – que talvez se torne um exemplo de êxito econômico
na história do século XX – e, ao mesmo tempo, profundamente fraturado, com 2/3
da sua população fora do mercado. É com esse Brasil fraturado que enfrentaremos
uma nova era.
E
o que herdamos dessa história brasileira com o apoio do Estado brasileiro? Na
minha visão, herdamos um país que consegue ser a oitava economia do mundo, em
poucos anos, e que tem, ao mesmo tempo, a maior fratura social dentre os países
de perfil semelhante. Os anos 90 serão de mudanças na economia mundial. Vivemos
uma fase de crise. Crise não só do mundo socialista, mas também do mundo
capitalista. Os economistas usam dois indicadores básicos para mostrá-la: o
modesto crescimento da produção – taxa mundial média de 2,5% a 3%, com
exceção da China, que tem crescido 10% ao ano, nos últimos cinco anos.
Mas,
na média, mesmo os grandes países apresentam taxa de crescimento muito pequena.
Outro indicador é a taxa de investimento, igualmente modesta nos últimos anos.
A economia capitalista entrou numa crise nos anos 90, e o que se vivencia é uma
fase de preparação e de mudanças, talvez para um outro ciclo expansivo, que no
entanto ainda não se firmou. Nesse novo ambiente mundial, destaco três grandes
movimentos: o movimento de globalização; o movimento de reestruturação
produtiva e o movimento de financeirização da riqueza.
NOVAS
TENDÊNCIAS NA ECONOMIA MUNDIAL E SUAS REPERCUSSÕES NAS POLÍTICAS PÚBLICAS BRASILEIRAS
O
movimento de globalização não é
novo, nem próprio da crise. É um processo em curso, já faz algum tempo, de
internacionalização do capital. Há um movimento antigo nessa direção, mas é
apenas nesse final de século que ele se firma e se consolida cada vez mais.
Marca, na verdade, uma mudança no mundo: a existência, hoje, de alguns atores
econômicos que têm condição de operar em escala global. Um grande conglomerado
multinacional, atualmente, pode ter centenas de fábricas espalhadas em dezenas
de países, pode controlar tudo em tempo real, porque a revolução das
telecomunicações assim o permite. Na verdade, os conglomerados multinacionais
planejam olhando para o globo e operam no âmbito do globo.
E
esse é um dado novo, agora existem atores com essa capacidade. E sua existência
incomoda todo mundo, porque cresce a inter-relação entre os espaços econômicos.
Esses agentes econômicos impõem certas homogeneizações. As regras do jogo, o
padrão de competitividade e o tipo de organização econômica são, na verdade,
impostos por eles, o que termina afetando o conjunto do espaço econômico
mundial, principalmente em países médios como o Brasil, que interessam a esses
agentes. E este processo é seletivo, não é homogêneo.
O
movimento de reestruturação produtiva é, na verdade, o modo como o capitalismo rearruma-se
para tentar sair da crise. Mudanças importantes estão acontecendo, além da globalização.
Com a crise, elas estão se processando para buscar um outro padrão produtivo para
o futuro. Há novos setores dinâmicos no cenário mundial, como, por exemplo, o complexo
eletro-eletrônico, que é muito mais dinâmico do que o complexo metal-mecânico.
E este foi um dos carros-chefes da economia do século XX. Assim, enquanto uns
perdem, outros ganham dinamismo. Quando nos detemos no perfil produtivo,
observamos a emergência de algumas atividades e o arrefecimento de outras. Há
tipos novos de processo produtivo em consolidação. A chamada revolução
científico-tecnológica está mudando, uma vez mais, o modo de produzir. Aquela
cadeia produtiva rígida, típica do século XX, está sendo remontada. As novas
técnicas produtivas introduzem a possibilidade da produção flexível e rearrumam
profundamente o processo de produção, ocasionando mudanças muito severas. Não é
à toa que a discussão em torno de educação é tão presente. Na verdade, o novo modelo
produtivo requer produção de conhecimento, requer inovação contínua no processo
produtivo. Os padrões gerenciais, que tendemos a desprezar, requerem
transformações, como, por exemplo, o relacionamento da empresa com os seus
fornecedores e com os seus clientes; a organização da empresa na sua
intimidade. Esses padrões estão mudando de modo profundo, inclusive
ideologicamente. Investimentos maciços estão sendo feitos, hoje, nas áreas do conhecimento
e da educação.
É
muito importante que o Brasil entenda o movimento de reestruturação produtiva, normalmente
negligenciado. Discutimos muito a globalização e pouco a reestruturação. Muito menos
discutido, ainda, é o movimento de financeirização. Há no mundo, atualmente,
uma enorme possibilidade de geração de riqueza na esfera financeira, o que
aliás sempre existiu no capitalismo, mas jamais com tamanha magnitude.
Paralelamente
a essas tendências, e associado a elas, algo muito forte ocorre hoje no mundo, que
não é da ordem do mundo real, mas é de natureza político-ideológica. É a
hegemonia da visão neoliberal. Quando observamos o mundo atual, vemos que essas
tendências favoreceram a consolidação de uma visão que é ideológica e política:
a visão de “quanto menos Estado e quanto mais mercado, melhor; quanto mais
individualidade e quanto menos coletividade, melhor”. Essa é a perspectiva dos
dirigentes mundiais. E é ela que impregna todas as sociedades neste final de
século. Trata-se de uma abordagem que favorece as mudanças que estão
acontecendo no mundo real, para que o capital globalizado circule no mundo
inteiro. Quanto menos Estado nacional houver, melhor será para a realização
dessa tendência.
Nesse
processo, redefine-se o papel dos Estados nacionais. Criam-se instâncias supranacionais,
como o Parlamento Europeu. Há menos Estado na produção, menos Estado na regulação
e, portanto, mais mercado, o que é ótimo para viabilizar o projeto neoliberal.
Por conseguinte, há menos políticas públicas e mais mercadorias e serviços. A
educação, por exemplo, é agora tratada como uma mercadoria; só é acessível a
quem pode pagá-la. Então, contrapomos a essa visão nosso ponto de vista de que
educação é um bem público e, portanto, é dever do Estado.
No
governo Fernando Henrique Cardoso, pode-se dizer que no Brasil havia duas
tendências importantes. A primeira traduzia-se na opção central por uma
inserção no mundo, que se poderia chamar de inserção submissa, mas que os economistas do governo chamavam de “integração
competitiva”. Era a opção de integrar, competitivamente, o Brasil neste
ambiente mundial. Como, na verdade, tratava-se de uma integração comandada pelo
mercado, podemos denominá-la submissa. E o Estado brasileiro, que tinha uma
política industrial explícita, deixou de fazê-lo. O mercado deve decidir o que
fica e o que não fica.
A
outra tendência importante que estava por trás das políticas públicas era a financeirização das riquezas. Se não a
considerarmos, não conseguiremos entender, por exemplo, a privatização no Brasil. Porque o
governo dizia: privatizaremos para conseguir receita patrimonial e
reduzir nossa dívida. Mas as contas do governo informavam seu endividamento.
O
que ele fez, de fato, foi exatamente o contrário. Vendeu as estatais e de tudo
o que já vendeu obteve apenas algo em torno de 9 bilhões de dólares. Só
conseguiu, de receita patrimonial, vinte por cento. Oitenta por cento foram
moeda podre. E aí pergunta-se: a dívida do governo diminuiu? Não! A dívida
cresceu. A trajetória da dívida mobiliária é de 55 bilhões de dólares com
Sarney, 12 bilhões com o calote de Zélia, 36 bilhões com Marcílio. Quando Fernando
Henrique assume o Ministério da Fazenda, a dívida é de 40 bilhões de dólares, alcançando,
já em setembro, 98 bilhões.
Somente
FHC, como ministro, aumentou em 150% o valor da dívida mobiliária do governo.
Ou seja, estamos mais endividados e sem o patrimônio que foi privatizado.
Patrimônio privatizado com moeda podre. Em vez de diminuir a dívida, o governo
aumentou as taxas de juros para atrair reservas (dólares) e emitiu muitos
títulos da dívida pública. Cresceu o endividamento e cresceu o déficit público.
Logo, o governo não resolveu seu desequilíbrio financeiro, mas se exauriu
nestas duas contas: o serviço da dívida externa e o serviço da dívida interna.
Essa é uma das discussões mais atuais.
Por
que carecemos de políticas públicas e por que o governo, de fato, não teve
meios para patrocinálas.
AMEAÇAS
E OPORTUNIDADES PARA O MOVIMENTO POPULAR
Mas
o Brasil não é o seu governo. Há outro Brasil, que somos nós. Quando observamos
esse outro Brasil, vislumbramos outra trajetória, muito diferente da traçada
pelos poderosos. Existe uma proposta de reforma do Estado na sociedade
brasileira! E não é a proposta neoliberal. É outra. Existe uma proposta de
descentralização! Na prática, a sociedade brasileira está realizando a
descentralização. Sempre que se diz concentrar, centralizar de novo, dizemos
não! Há uma decisão, no seio da sociedade brasileira, que rejeita a centralização.
Sabemos que centralizar não dá certo no Brasil.
Estamos
operando a descentralização. Estamos ocupando os espaços da descentralização.
Existe um espaço a favor da democratização do Estado brasileiro! Estamos, de
muitas formas, dizendo não àquele Estado fechado, submetido somente aos lobbies.
Há que existir um amplo espaço para disputarmos as decisões e a implementação
das políticas públicas necessárias. Sente-se uma força na sociedade brasileira
tentando instaurar o espaço da descentralização. Existe uma decisão a favor das
políticas sociais! Reformar aquele Estado desenvolvimentista, que só patrocinava
o crescimento da economia, e abrir espaço para um Estado que patrocine saúde, patrocine
educação, patrocine segurança. Um Estado com políticas sociais. Existe uma proposta
a favor do Estado transformador!
Existe
uma experiência acumulada, ao longo desses anos, sobretudo nos espaços governamentais
locais, muito mais no âmbito dos municípios e de alguns estados do que no âmbito
federal. Existe muita experiência acumulada, também, nos espaços não governamentais.
O
Brasil não está morto! Está cheio de experiências locais mostrando como se
organiza, como se planta, como se comercializa, como se governa.
O
Brasil não está morto! Está cheio de experiências locais mostrando como se
organiza, como se planta, como se comercializa, como se governa. Os desafios e
oportunidades para o Brasil implicam considerar a heterogeneidade do país, e nesse
aspecto é equivocada a trajetória das políticas públicas, por conta da visão centralizadora.
De baixo para cima, consegue-se trabalhar a heterogeneidade. Mas como as políticas
generalizadoras vêm de cima para baixo, a tendência é operar como se o Brasil
fosse um país uniformemente semelhante, o que não é. Mas sabemos que, mesmo na heterogeneidade,
é possível encontrar pontos de semelhança; generalizar o que é comum e operar
sobre o que é diferente. Trata-se de um desafio porque não temos essa tradição
nas políticas públicas governamentais. Outro desafio é romper com a idéia de
que público é sinônimo de governamental, apesar da tradição brasileira.
O
correto para o Brasil parece ser o modelo descentralizado coordenado. A questão é quem fará essa
coordenação. Como é que vamos organizar esses focos de coordenação nas
políticas públicas governamentais? Qual é o papel das ONGs nesse ambiente
descentralizado? Se nem tudo que é público é governamental e se há
descentralização, resta um espaço enorme para as ONGs. E como é que as ONGs
podem evitar a fragmentação? Qual é o papel das associações de ONGs, no Brasil
de hoje, em relação às políticas públicas? Para examinarmos essas indagações,
devemos discutir o modelo descentralizado coordenado, que é o que parece servir
ao Brasil. O papel regulador do Estado pode e deve ser ampliado. Com um Estado
regulador pode-se discutir.
Outra
questão é o avanço obtido em termos da democratização. Em muitos casos, tivemos
de construir espaços. Em outros, o governo é que abriu espaço. Hoje existem os
Conselhos institucionais, importantes espaços de participação, mas cuja
composição é que define a relação de poder. Outro aspecto importante é a
atribuição dos Conselhos. Uns são consultivos, outros são deliberativos.
Conseguimos influir mais quando eles são deliberativos, ou seja, quando sua
atribuição é deliberar, é influir nas decisões e, portanto, é exercer uma
parcela do poder.
A
experiência de descentralização diante da crise financeira é mais uma questão a
ser discutida. Participamos dos Conselhos Municipais de saúde, por um lado, e a
saúde está sendo privatizada, por outro. Então administramos o pedaço podre que
resta do sistema público de saúde. Será que vale a pena ter Sistema Único de
Saúde, com Conselho democratizado e tudo o mais, se nos sentamos ali e não
tomamos nenhuma decisão, porque não há o que decidir? Aí achamos que o que está
errado são os Conselhos. É este o erro, ou o erro é a falta de investimento do
governo na saúde?
Afinal,
onde está o erro? O erro está na política econômica, é lá que temos de
intervir, e não na nossa experiência de gestão descentralizada e democrática. Para
terminar, sublinhamos algumas idéias-chave em torno da discussão das políticas
públicas e do papel dos Conselhos:
1.
A economia é resultado das decisões políticas e não de decisões técnicas como o
discurso tecnocrático quer fazer crer.
2.
A crise do Estado é a crise de um modelo específico de Estado que vigorou no
Brasil durante a maior parte do século XX, um Estado desenvolvimentista e
conservador;
3.
O modelo de Estado desenvolvimentista foi promotor de desenvolvimento, por um
lado, mas também das enormes desigualdades que temos no Brasil de hoje, por
outro;
4.
Principalmente a partir do regime militar, esse modelo de desenvolvimento foi
sustentado pela internacionalização da economia e pelas crescentes dívidas
internas e externas que geram a insustentabilidade do modelo e sua crise
profunda;
5.
As desigualdades sociais geradas por esse modelo são um enorme obstáculo para a
superação dessa crise;
6.
As opções políticas no governo Fernando Henrique Cardoso privilegiaram o
pagamento da dívida, atendendo ao interesse dos credores, em detrimento da
promoção de políticas sociais;
7.
Os Conselhos Municipais podem ser um importante instrumento no enfrentamento
dessas desigualdades;
8.
O município sozinho não tem condições de responder às imensas demandas sociais herdadas.
Daí a necessidade de pensar políticas públicas de forma integrada, nos âmbitos federal,
estadual e municipal. Os Conselhos podem constituir importantes instrumentos
dessa articulação. Os Conselhos podem criar uma articulação poderosa, tanto
horizontalmente (entre os diferentes Conselhos), quanto verticalmente (entre os
diferentes segmentos de uma mesma política);
10.
As conferências nas diversas escalas (federal, estadual e municipal) são
importantes porque promovem uma visão de Estado ou de país, em torno de determinada
política.
11.
Os atores sociais e os Conselhos setoriais devem articular-se e integrar-se com
a política econômica geral. É nosso direito debater e conhecer a política
econômica geral.
PARA REFLETIR:
1.
Discuta as principais características da herança histórica das políticas
públicas brasileiras.
2.
Discuta as novas tendências da economia mundial e seus possíveis impactos sobre
as políticas públicas brasileiras.
3.
Dê exemplos de experiências locais de políticas públicas que você considere democráticas
e inovadoras. E discuta os limites da ação local num país como o Brasil e
sugira iniciativas capazes de enfrentar tais limites.
PARA LER MAIS:
ARAÚJO,
Tânia Bacelar. Ensaios sobre o Desenvolvimento Brasileiro: heranças e
urgências. Rio de Janeiro: Revan; FASE, 2000.
FURTADO,
Celso. Em Busca do Novo Modelo: reflexões sobre a crise contemporânea.
São Paulo: Paz e Terra, 2002.
FIORI, José
Luís. Brasil no Espaço. Petrópolis: Vozes, 2001.